Agustina Bessa-Luís
A Psicologia do Medo
O medo é o que impede que tudo o que chega
às mãos dos homens não se torne em sua propriedade.
Basta produzir uma impressão que não se pode explicar,
inserindo no medo o desconforto da culpa.
É assim que milhões de pessoas podem ser pastoreadas
nas ribeiras da paz por muito poucas.
E nas trincheiras da guerra por outras tantas, senão as mesmas.
in Antes do Degelo
«Ela é demasiado fantasista para ser rigorosa.»
Um homem chama fantasia às mudanças que se operam
na mulher, num constante e vertiginoso curso.
E nas mulheres tudo é mudança, compasso que se
desdobra sem na realidade se alterar.
«Longos dias têm cem anos» —digo, enquanto projeto
e vou articulando esta biografia. Ao mesmo tempo,
tudo acontece e muda: a infância de Vieira e a minha,
ambas peregrinas boémias de quatro anos, ela fumando
um cigarro, eu tomando uma bebedeira com vinho do
Porto—a única, sem desmando, por curiosidade e inocência.
Trasfegava-se o vinho, e ele tinha uma cor ruiva, cheia,
dourada, nas celhas pretas. Eu molhava o dedo e provava,
gozando já não o sabor, mas o esquecimento, o dom
invisível em que me ia criando. Os invisíveis são temíveis;
por isso têm que provar a sua existência mais do que outros
quaisquer. Por isso pintam ou escrevem e, forçosamente,
se fazem notados.
Aqui estou no atelier que já é um pouco minha morada,
na qualidade de invisível. Nada me perturba, sento-me
nas cadeiras de verga e procuro com os olhos algo com
que possa familiarizar-me: um bule de chá, um banquinho
para pôr os pés, um xaile.
- Presença de Vieira da Silva"
Sobre o autor
Comentários
Enviar um comentário
sentidos despertos