Maria Teresa Horta
Excerto de entrevista a Maria Teresa Horta realizada pela Magazine Notícias, em 2014. Aqui disponível na íntegra, clicando na palavra - Maria Teresa Horta, Pessoa
A separação dos seus pais mudou-lhe a vida?
_Sim, perdi a mãe e a avó ao mesmo tempo. A minha mãe saiu de casa e a minha avó morreu um mês e tal depois. De repente, fiquei com o meu pai e com as madrastas: a madrasta da minha mãe, terrível, que passou para mim e está no conto Perecível, das Meninas, e a minha madrasta.
A sua madrasta era a da Branca de Neve?
_Era, com maçã envenenada e tudo. E daí o conto Branca de Neve. Foi o último a escrever, mas tinha de estar neste livro. Era uma história que eu tinha de contar. Um escritor quando escreve também se liberta. Por isso é que este livro tinha de ser escrito.
E o seu padrasto?
_Era um óptimo padrasto, mas era fascista, era diretor da Assistência aos Inválidos e tinha uma arca com os discursos todos dos ditadores, o Hitler, o Mussolini, o Salazar, aquilo não ardeu não sei como, e tinha uma figura do Estaline virada para a parede, de castigo. Ele fascista e eu a meter debaixo da cama os panfletos políticos de oposição ao regime que distribuía às portas, com 15 anos.
Foi preciso coragem para a sua mãe, no fim dos anos 1940, em Portugal, sair de casa.
_Muita coragem. Fiquei sempre muito dividida. Foi ela que saiu de casa e deixou o meu pai e nunca me conformei. Uma vez, já eu era mulher e mãe, encontrei uma pessoa do passado que conhecia os meus pais e perguntou por eles e eu respondi que estavam bem, mas que não me conformava com a separação, como se tivesse sido ontem, passados aqueles anos todos, está a ver o que é? Apesar disso, protegi a minha mãe e defendi-a perante a família, desde pequenina. Eu era aquela que comia as cartas que ela me escrevia, como no conto Perecível, para ninguém saber onde ela estava. E para a incorporar, porque tinhamuitas saudades e via-a em cada canto, em todo o lado.
Tomou partido?
_Curiosamente, tenho muito mais que ver com o meu pai, intelectualmente, do que com a minha mãe, mas ele tinha tudo. Era inteligente, era um grande médico, uma grande figura, toda a gente o admirava, ele sabia tudo, mandava, desmandava, tinha opiniões. A minha mãe era o lado frágil da história, teve uma coragem que não era hábito ter-se e pagou por isso. Ficou sem ninguém, sem uma amiga, sem dinheiro, a família toda de costas voltadas para ela, a lutar para nos ver, sempre, sempre. Na tal carta que comi ela dizia-me isso, que estava a lutar por nós. Conseguiu ficar comigo, que era a mais velha, e ver as outras uma vez por semana. Tinha de a proteger. E isso fez-me crescer. Fiquei sempre com ela, até à morte. Digamos que é uma história de amor. O meu pai dizia que se esqueceram de cortar o cordão umbilical que me ligava à minha mãe e, sim, ela sabia que eu estava incondicionalmente ao lado dela.
Mas quando fala dela, no seu livro, surge-nos uma mulher muito bonita, volúvel, distante.
_Era uma mulher distraída consigo própria. Foi a minha avó que me criou. Ela alindava. Teve-nos muito cedo. Ela e a Natália [Correia] eram consideradas, na altura, as mulheres mais bonitas de Lisboa, uma loura e outra morena. Iam à ópera e ficavam à espera uma da outra para verem como iam vestidas. A minha mãe era uma mulher distraída consigo própria e o meu pai um homem distraído consigo próprio…
Foi feliz, a sua mãe?
_Acho que não. Morreu com 94 anos e a última pergunta que me fez foi: «O que é que eu fiz da minha vida?» Eu respondi: «Fez o que fez e fez muito bem. Fez a sua escolha.» Neste momento, foi a mulher que falou, porque a filha diria: «Que pena não teres ficado.» Teria sido tudo muito mais fácil, mas se calhar não estava a falar aqui consigo agora.
Por isso, precisou de 17 anos de psicanálise para escrever as Meninas?
_Sim, as meninas que ali estão, sobretudo na primeira parte, são partes de mim que surgem com a psicanálise. Houve uma relação muito especial com a Maria José Vidigal, mãe psicanalítica, mas também a mulher que escolhi para fazer uma viagem comigo. A partir dessa aventura espantosa que foram aqueles anos da psicanálise, a minha escrita passou a ser muito mais lúcida e curiosamente com um distanciamento muito maior de mim mesma. A psicanálise dá isso, o examinar a outra que somos, com o distanciamento que nos permite descobrir coisas em nós e verbalizá-las. Entender-me foi o que fiz na psicanálise. E ao entender-me, entendo pela primeira vez que em mim não existo eu, mas sim eu, outra e outra, que acabo por verbalizar no meu livro de poesia Inquietude, coisa que não tinha sido capaz de fazer até aí.
Que idade tinha quando começou a fazer psicanálise?
_Tinha 39.
E porque sentiu essa necessidade?
_Quando o meu filho, que é uma grande paixão da minha vida, começou a entrar na adolescência, percebi que a minha adolescência não estava resolvida, porque à fala adolescente dele eu dava uma resposta adolescente. Resolvi que tinha de me entender para poder entender os outros.
A adolescência é um período da sua vida do qual quis sair depressa. Porquê?
_Porque não gostei nada. Foi muito desinteressante. De repente, tive de deixar a minha infância para trás, com 9, 10 anos, porque tinha de me defender, e ao tentar defender-me cresci. Acho que toda a minha vida tive de me defender. A minha única defesa era a minha avó paterna. O conto Perecível marca essa passagem. Na idade oficial da adolescência já eu estava a caminho de ser uma mulher adulta.
Na adolescência, davam-lhe dinheiro para comer na escola, que gastava em livros. Foi a leitura que a salvou?
_Absolutamente. Como muito mal desde pequenina, para desespero de todos à minha volta, por isso não me custava trocar o almoço por livros. Lembro-me de ler Cesário Verde aos 14 anos obsessivamente. Entrava no meu quarto, fechava a porta à chave, coisa que a minha mãe detestava, e lia sentada na borda da cama. Lia e lia e lia e lia até desentender o que estava a ler. Não sabia porque o fazia, mas era um prazer imenso. Percebi depois que estava a incorporar a poesia. Passei pela fase do Cesário, depois o Antero, o Camões sempre… salvou-me, na adolescência, a leitura obsessiva que sempre fiz desde muito pequena, e salvou-me a escrita.
Mas também escreve desde muito pequena, não é?
_Sim, escrevia aquilo a que eu chamava romances. Perguntavam-me: «Então, o que estás a fazer?» E eu respondia: «Estou a escrever um romance.» Claro que nunca ia a mais do que cinco ou seis frases, mas todos os dias escrevia e aquilo fazia-me sentir uma grande escritora.
E poesia, quando começou a escrever?
_Aos 14 anos, precisamente. Depois de muito ter interiorizado todos aqueles poetas maravilhosos portugueses, um dia vou com o meu pai, as minhas irmãs e a minha madrasta para o Hotel do Buçaco passar dois ou três dias, acordo muito cedo – sempre acordei, antes de toda a gente, até hoje –, saio com papel e lápis e escrevo o meu primeiro poema na mata do Buçaco. Foi uma descoberta incomparável, uma liberdade…
A poesia é-lhe intrínseca?
_É a minha voz natural, aquela que me sai todos os dias, que sara a ferida, que compensa tudo. A poesia ensina a voar, é a liberdade total, perante as palavras, perante os ritmos interiores, é a vida mesmo. A partir daquele momento soube que há sempre aquele lugar, que é o paraíso para mim, para onde posso ir. Acontecem-me coisas horríveis, mas eu tenho sempre aquele lugar, que é meu.
E a prosa?
_Costumo dizer que eu sou a minha poesia, e para a prosa, para a ficção, vou poeta, levo a minha poesia toda atrás de mim. É essa a mais-valia do poeta. A prosa é um prazer físico imenso porque aí não sou eu diante de mim própria, mas diante da outra, sou eu na conquista de um terreno, que desde pequena achava que era o meu, e para onde vou com todas as histórias que tenho dentro de mim. Sou uma contadora de histórias e quando me sento para escrever um conto ou um romance ou uma novela estou perante o desafio de escrever aquilo que conto habitualmente às pessoas. E aquilo que calo. Este livro, Meninas, é muita coisa que eu calo.
Quem são estas meninas quando não são a Maria Teresa?
_As meninas da primeira parte são eu, as da segunda também têm partes de mim, mas são sobretudo o reflexo daquilo que se tem feito ao longo dos séculos a várias meninas. A violência, por exemplo, em relação a uma Carlota Joaquina que as pessoas habitualmente detestam, esquecendo-se de que foi arrancada da sua casa, da sua família, do seu país e da sua língua para vir para Portugal, um país cheio de missas e de promessas e de rezas que ela não percebia, e casar-se com um monstrinho que era o D. João VI. Essa menina do retrato não tem nada que ver comigo, a não ser no desafio que também senti toda a vida: fazer aquilo que considero que tenho de fazer, doa a quem doer e doa-me a mim também.
«Proíbem-me e eu incandesço.» Esta frase define-a?
_Sim, e aliás isso está num dos contos deste livro, chamado Maria do Resgate, a menina que abre a porta aos anjos. Lembro-me de ser muito pequena e o meu pai, que era médico, chegar do hospital e perguntar o que eu tinha feito durante o dia e eu responder: «Hoje bateram à porta, fui abrir e era um anjo.» E o meu pai dizer «esta menina é estranha». Dizia isso muitas vezes. Mas eu mantinha até ao fim. A Maria do Resgate é a menina que abre a porta aos anjos e que, desde muito pequenina, quando lhe ralhavam ou a obrigavam a fazer alguma coisa, incandescia, como eu. Quando me proibem, incandesço, é qualquer coisa que só sei explicar assim, porque é de tal maneira luzente dentro de mim. Se me dão uma ordem tenho muita dificuldade em não fazer exatamente o contrário, ainda hoje, com esta idade.
Numa das primeiras histórias conta o seu primeiro ato de rebeldia, quando fugiu a calçar as sandálias que a sua mãe mandou calçar.
_Sim, aquela menina que trepa a parede, no conto Desobediência, sou eu. Aconteceu mesmo. Vinha com a minha mãe e ela disse: «Teresinha (não Lucinha), calça as sandálias», eu devia ter 1 ou 2 anos, e atravessei a rua toda e a casa toda e trepei a parede, para não calçar as sandálias. Assustámo-nos as duas, mas só desci quando ela disse que já não era preciso calçá-las. Isto ficou-lhe como exemplo de que há outras maneiras de eu fazer o que as pessoas querem, mas nunca mandando-me fazer. Aí incandesço e é terrível, porque de vez em quando custa-me caro.
Como quando escreveu o Minha Senhora de Mim [1971, poesia erótica]?
_Sim, o Minha Senhora de Mim foi apreendido pela PIDE, ameaçaram a Snu Abecassis de lhe fecharem a editora se publicasse mais alguma coisa minha, recebia telefonemas em casa às tantas da manhã a insultarem-me, n’A Capital, onde trabalhava, a telefonista tinha de fazer a triagem das chamadas, foi um período terrível, fui espancada na rua. E quando aqueles homens me estão a bater e dizem «é para aprenderes a não escrever como escreves» é determinante. Ai, escrevo, escrevo. É daí que nascem as Novas Cartas Portuguesas [com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa].
Nunca teve medo?
_Claro, antes do 25 de Abril todos nós, que nos opúnhamos ao fascismo e lutávamos pela liberdade, tínhamos medo, mas uma coisa é ter medo, outra é, por causa disso, ficarmos fechados em casa, sentadinhos e bem-comportados e não fazermos nada. O medo era inerente ao nosso trabalho. Todos os exemplos de luta que tenho daquela altura, mesmo escritores, como a Natália [Correia], a Sopia [de Mello Breyner Andresen], o Urbano [Tavares Rodrigues], todos tinham medo de ser presos e torturados pela PIDE e de ir parar a Caxias e ficar lá a vida toda, mas não fazer nada seria uma cobardia, e isso não se nos punha sequer. A primeira coisa que me define é ser uma lutadora pela liberdade. É aí que se insere-se o feminismo.
Maria Teresa Horta é sinónimo de feminismo em Portugal. Mesmo quando outros se demarcaram, manteve-se firme. Ainda há muito por fazer?
_Eu já nem respondo quando me perguntam se o feminismo ainda é preciso. Não tenho paciência. Ai não é preciso? Todos os dias as mulheres perdem os empregos e não é preciso? Continuam a receber menos pelo mesmo trabalho e não é preciso? Apanham pancada e não é preciso? São mortas e não é preciso? Os homens querem determinar-lhes a sexualidade e não é preciso? É óbvio que é preciso. Na luta das mulheres anda-se quatro passos para a frente para se recuar três e meio. É muito difícil.
Houve alguns avanços, apesar de tudo.
_Pois, a história das universidades. Claro que estão cheias de mulheres, porque agora já podem entrar, com um atraso de séculos. Por exemplo, as mulheres chegaram à literatura a pulso, aldrabando, mentindo, chamam-lhes as ladras das palavras porque as palavras são dos homens. Para escrever tinham de ter pseudónimos de homens. E ainda hoje continuam a existir espaços da literatura que são proibidos às mulheres, não fica bem. O erotismo é um deles, as mulheres que escrevam poesia ou contos ou romances eróticos incomodam. E isso acaba por atingir a própria mulher. É difícil, é preciso ter muita persistência. A minha poesia erótica incomoda. A família alargada quase nunca fala nisso. O meu livro Destino foi um sucesso familiar, toda a gente me felicitava, estranhei, mas depois percebi: tem menos poesia erótica. É impressionante.
Nunca hesitou?
_Toda a minha vida tive medo de ter medo. Talvez seja muito inconsciente, mas o que sempre temi foi que o medo me pudesse impedir de fazer o que quer que fosse. Quando chego à Minha Senhora de Mim e percebo que não, não é aquilo que tenho escrito até agora que quero, o que quero é encontrar a minha linguagem, a minha palavra, o meu discurso, a minha poesia muda. «Ah, mas isso as mulheres não fazem.» Não me interessa, e apanho e sou insultada, mas vou em frente. Isso é a desobediência natural em mim. Sou uma mulher desobediente, sempre fui.
E vem de onde, ou de quem, essa rebeldia?
_Não sei, mas sempre fui assim e nunca fiz nada para deixar de ser. Houve muitas coisas em mim que achei que podia e queria mudar, mas essa desobediência, essa chama, que é o âmago de mim e que tem que ver com a minha literatura e com a minha vida, nunca quis mudar. Nunca tiro a escrita da minha vida. A mulher que vai para a luta política é escritora, é poeta. A menina que sobe a parede já é a menina que vai escrever a Minha Senhora de Mim um dia. E a menina que vai escrever a Minha Senhora de Mim é a que escreve As Luzes de Leonor e as Meninas. Não há grandes diferenças entre a poetisa e a mulher, a amante e a escritora. Sou uma única.
Para muitos deve ser estranho que uma mulher assim, que escreve o amor e o erotismo como a Maria Teresa, seja casada com o mesmo homem há 50 anos. Como é a sua história de amor com o Luís?
_Como é esta história de amor? Sou uma mulher apaixonada, mas para me apaixonar assim, o homem teria de reunir várias caraterísticas que nunca acreditei que pudessem existir num homem só. Até conhecer o Luís, fugi, recuei, ele também. Eu tinha 25, ele tinha 22. Mas foi impossível. Foi uma paixão e a paixão não se explica. Ele é aquilo que eu precisava, é aquilo que me convoca, que me entontece, que me dá vertigem, ainda hoje. É uma paixão, não é um amor.
E como é que se faz durar uma paixão tanto tempo?
_Não sei, comigo não passou e não é uma ideia, é verdade. Posso estar muito serena, mas se de repente penso que perco o Luís fico louca, ensandeço, é estranho, não tenho controlo, fico apavorada. É como se me perdesse a mim. Há qualquer coisa nele que me enlouquece. Toda a poesia de amor que escrevo é para ele e é sempre diferente e nunca digo o Luís tal como ele é, nunca digo tanto quanto sinto por ele, por isso volto sempre a tentar dizer e fica aquém passados 50 anos.
(...)
Pessoas que motivam.
Música que provoca
Outras perspetivas
Tigerlilies Thousand violins
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