Cristina Guedes

Temperos da vida

As borboletas tinham regressado áquelas bandas, não obstante o felino continuar a rondar bem aquele sitio. Era entretenimento dele correr atrás delas nos momentos de ócio. Entre lambidelas, bocejos e ronronadelas, ei-lo que, assim que via as asas esvoaçando, zás, ás vezes tinha a sorte de as atordoar e outras, pra infelicidade da metamorfose recente, de as aniquilar. Poisavam entre os miosótis do descampado, entre malmequeres e marias e erva bruídeira. Do azevinho pouco restava pra servir de camuflagem. Os fenos, os mais altos, abriam o apetite da Mimi, que ruminava, limpando tudo á sua volta. O raio da cabra havia de dar que fazer. A romãzeira secara, pensava eu. A boca da cabra mirrava tudo, até a crença no deus das colheitas.
- Estaferma, qualquer dia vais ruminar pra longe!
Não passavam de ameaças a que ela pouco ou nada ligava. Ela queria era pasto, de preferência silvas e vides carregadas de folha tenra. Já no fim do dia, ainda zanzoavam pelo espaço em cores diversas borboletas e mosquitos, uma espécie de gambuzinos, e a passarada era diversa. Espécies que nunca ouvira falar. Lembro-me que foi numa dessas tardes, perdida entre pensamentos bons e umas bolachas de milho que fui tentando me lembrar dos nomes dos pássaros naquele pedaço de verde. Desde pardais a pintassilgos, poupas, pombas, era uma cambada de p's, com asas maiores que os bicos, aterrando nos fios pendurados nas paisagens, entre esteios e videiras, entre redes e arames farpados, colocavam-se de lado e levantavam uma asa de cada vez, pra se refrigerarem. O calor não amainava e a paisagem, ao longe tornava-se desfocada pelas temperaturas. No final do dia, os 32 graus pingavam as primeiras brisas que pouco ou nada aliviavam. As andorinhas seguiam os voos altaneiros, rasando o telhado mais alto da casa velha de dois andares que ainda de pé, implora chão. Uma antena em desuso onde se penduram os melros e os canários, onde descansam os olhos e procuram locais húmidos pra bebericarem, enquanto os mais esfomeados se lambuzam no corredor do galinheiro, debicando cereais e pão molhado. Se tento ouvir o silêncio, tenho que o intervalar com os grilos e o galo pedrês que não tem hora do dia nem do mês pra cantar e desafinado. Talvez o silêncio ali venha convocado pelos espíritos do entardecer. Em três anos de regalo desta paisagem, não me lembro de dia nenhum em que esta bendita paz não estivesse presente. Uma paz acompanhada de vida.
E basta que me recorde da cidade pra maldizer a irritação ocular, da febre, da pressa cheia de stress, das filas intermináveis á minha porta na cidade, de gentes e bulício que só acalmava á hora de jantar, pra começar logo a seguir, motores potentes que arrancavam o asfalto da Fernão de Magalhães, dos semáforos e das passadeiras apinhadas onde os peões pediam clemência aos automobilistas, dos sacos e saquinhos, dos contentores e dos poios de cão nos passeios, dos buracos e dos arrumadores colados aos carros parados, da eterna fila de gente no doce alto para o pão quente, dos fins de tarde sem cor e sem diferença, numa sucessão de dias e prédios iguais.
O dia em que fui iluminada para visitar este pasto, pra decidir fazer da minha vida um tranquilo envelhecer. Vou á porta e vejo os meus animais a espreguiçarem-se, preparando-se tranquilamente pró sono que vem depois da refeição, e se faço um gesto maior de onde se desprenda algum sinal da minha presença a cabra e o carneiro despedem-se de mim, o Kiko, a Branca, enfim. E pra onde quer que olhe, só ao longe há sinal de civilização, pontilhada por luzes de várias tonalidades e várias distâncias e relevos. Os legumes vão medrando todos os dias mais um pouco, a primeira batata metida á terra está quase madura, pronta pra ser arrancada e o cebolo já mostra barrigas ao calor, as abóboras já desenharam corredores e estendem-se como se fosse tudo delas, entre pimenteiros e melões. Espreitam os rabanetes já roxos por entre a terra molhada e este cheiro conhecido de terra nova é um elixir que não troco por nada. Hão de vir tempestades e verões onde as colheitas revezam as semeaduras e vice-versa e nem as missas campais da Nossa Senhora do desterro, resvés com o meu portão, vai diminuir este sabor de trilho certo.

Comentários

  1. aromas, sons que fazem parte da paz. um espantoso silêncio embrulhado em ecos reconfortantes. **

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  2. é isso. Reconfortante, o lugar.
    Bj Alice

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