Cristina Guedes
Terapia ultimatum ou narrativa de choque
Baixo a voz. Porque temo assustar-te. És de melindres, ocasionalmente.
Sempre me ouviste as verdades - as minhas - e aos silêncios, nem sempre os compreendeste. Mas saber ouvir é a virtude necessária para te aperceberes da entoação da minha voz nas palavras que te são dirigidas.
- Enquanto o sol continuar a ser tapado com peneiras e teimar em deixar cabisbaixos os mais resistentes ao escaldão, vou-te imaginando o pavor, por saberes que é pra ti que falo. De respiração entrecortada - como ao subires a íngreme inclinação de silvados do caminho - de coração acelerado, as palavras caírão no dia - únicas no scroll down - como a sentença tornada pública.
Os sonhos são só momentos que medem o fascínio acentuado ou agudo, o arrebatamento moderado ou açulapado. Nem todos possíveis. O nosso não tem sido vivido a dois, desculpa este meu radicalismo! Mas, enquanto eu sonho, tu derrubas Lancelot´s e, agora, sinto que é melhor pausar a voz outra vez e acendo o maldito cigarro, protagonista de tantas iras tuas. Ouço o barulho dos ramos secos quebrados pelos animais aqui perto e o silêncio seco da caneta poisar o papel, estéril de intenções. Voltemos á entoação de voz, para que não me perca do que intendo trilhar. A voz está controlada, sem fantasmas a falarem por mim, controlo esse graças á distância entre esta folha de papel e o teu olhar. Dizia-te que os sonhos são pedaços do nosso encantamento quando, sem asas, esvoaçam os céus e não tememos não haver regresso. Chama-se também, e se preferires, nadar sem pé.
Quando encontras pétalas de rosa soltas, não pensas - pobre rosa, desfeita!, mas referes-te á mesma, ainda que em monólogo, da sua beleza mantida, do seu perfume e da sua textura macia, qualidades que lhe estão associadas. Gestaltica, esta visão esdruxula da flor rosa desmontada. No amor, não temos isso. Amámos o todo nas partes e glorificamos estas partes quanto menos encantados.
Com a mesmo inclinação de voz, desmonto-te não a rosa de Hiroshima, mas uma rosa qualquer, porventura encontrada junto ao galinheiro que tão bem conheces. Qualquer uma delas servirá para, na mesma voz taciturna, te explicar que as relações não se mantêm intactas. O tempo parece caminhar nos intervalos, nos hiatos, entre o teu nariz e o meu, entre os fonemas e as pausas penduradas a pensar palavras - catalogando o que falta e o que tem a mais, um dossier inacabado.
- Enquanto caminhamos sem pé ou sem asas, as you wish, mares e céus afora, tous va bien. É quando temos que ir ás boxes, em visita de rotina ou falta de combustível que tiramos a primeira pala, largamos a primeira folha, perdemos a primeira pena, soltamos o primeiro ai. Como se déssemos conta da cegueira que fomos cometidos voluntariamente. Essa cegueira ou doideira, máscara de atalhos que nunca nos serviu, uns números abaixo e estaria perfeita. O arrebatamento consiste na enorme, na vastíssima possibilidade de um astronauta que parte para uma viagem sem volta . Esgoto-a logo no primeiro instante. A milhões de anos-luz.
Quando chegas e pedes colo, e fazes de ti o centro das atenções, não me estás a amar mas a desfocar o sonho pra um teu, pessoal e doentio, se calhar, narcisista, porque os teus olhos mendigam: ama-me e não amo-te.
Nesta imensidão de diferenças e ocorrências de duas distintas almas, prisioneiras de asas ou de braços, não existe o amor mas a vontade braçal de o fazer. Existe um oceano de falta de afinidades, do eu tal como tu, do eu também, do nós por aí fora.
Os Scorpions cantam a balada do let me take you faraway e eu sinto que já não temos capacidade de nos levarmos a lado nenhum. E nenhum lado deve ser um sítio escuro onde não usamos a imaginação para voar sem asas ou nadar sem pé. As rotinas são tudo o que lá encontro, os chavões, os lugares comuns, os "já sei em que pensas" e "quando vais respirar ou suspirar de enfado e tédio".
E chamo-me á terra, mas a voz ainda está dirigida a ti, quase em jeito de embalo, de ninice, de menina que ama o menino que só quer ser homem e envelhecer antes do tempo. E tenho n mente a ideia do sonho que, porventura, será sonhado sozinha. Ou não sonhado, de todo.
E tu deves ter outras metas, outros objetivos, outros nomes, para riscares da lista das vítimas de controle. O sistema de segurança falhado e a culpa será sempre da asfixia dos dias, das algemas , do corte no orçamento imaginação, do controle dos passos e nomes que apenas te assombram e assustam, que te pesam nos ombros como dúvidas perpétuas. Não, o amor não é isso. Ou aquilo. E pode, tal como a receita de culinária, fazer-se. Com vontade, mas não com o anular dos ingredientes. Pontos de vista diferentes, eis como chamas a diferenças que não coabitam.
A minha voz mantém-se controlada - e disso percebes tu - não recorro outra vez a nomes impróprios para te açoitar o ego. Para ver oscilar esse teu tamanho XXL e, mingares logo a seguir, quando eu volto o rosto, pra apagar o cigarro no prato do vaso do cacto, já falecido. E, de todas as horas em que a mania de perseguição, o complexo de inferioridade simulado ao contrário ou falta de amor próprio te obrigaram a ofenderes-me, deste-te tu conta que só lá estava o teu ego, sem público, sem cama, a bater palmas ás tuas encenações de macho que se quer afirmar? Cenas, no fundo, de autocomiseração e histerismo, digo eu, ainda me preocupam os meus gritos, os que não consigo controlar, dado serem sentimentos negativos que desconheço em mim, provocados por nós. Estou em terra mas out, como tantas vezes utilizas, pra dizeres que estás bem. Pois eu, quando estou out, não estou bem, mas pretendo. Aborto missão Apolo. Desço no trem das vertigens e aterre onde aterrar, vai ser um lugar melhor do que esse que me queres destinar.
Não quero que o teu inferno de vida seja a minha casa. Deseja-me um bom regresso, mesmo que estejas fora dele. E agora, deixando-te a pensar se valerá a pena revalidar votos ou alterar residências, levanto-me e poiso, então a caneta, e descanso a voz, sem reler ou corrigir o que quer que seja que vá mal encaminhado. Que de caminhos, só percebo os que ainda quero fazer.
Não quero que me fiques vida fora entalado na noite e tenha de te chamar insónia.
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sentidos despertos